Ritmo, Paranauê 'Capoeira gospel' cresce e gera tensão entre evangélicos e movimento negro
Associando a arte afrobrasileira a músicas de louvor cristão, religiosos sofrem resistência dentro e fora das igrejas.
Estavam presentes o berimbau, o atabaque, a ginga e os saltos mortais.
Quase tudo fazia lembrar um jogo de capoeira típico, mas, em vez dos
cânticos que enaltecem os orixás ou trazem referências à cultura negra, os
versos faziam louvor a Jesus Cristo e a roda era alternada com momentos
de pregação e oração.
"Não deixa seu barco virar, não deixa a maré te levar, acredite no Senhor,
só ele é quem pode salvar", cantavam as cerca de 200 pessoas, reunidas
na quadra de uma escola para o "1º Encontro Cristão de
Capoeira do Gama" (região administrativa do Distrito Federal),
numa tarde de sábado.
Era mais um evento de capoeira evangélica, também chamada
de capoeira gospel, vertente que ganha cada vez mais adeptos no
Brasil, principalmente por meio da palavra e do gingado de antigos
mestres que se converteram à religião.
Se antes a prática enfrentava resistência dentro de igrejas, agora, nessa
nova roupagem, é cada vez mais considerada uma eficiente ferramenta
de evangelização.
"Hoje é difícil você ir numa roda que não tenha um
(capoeirista evangélico), e vários capoeiristas viraram pastores.
É um instrumento lindo de evangelização porque é alegre, descontraído,
traz saúde, benefícios sociais", afirma Elto de Brito, seguidor da Igreja Cristã
Evangélica do Brasil e um dos palestrantes do evento.
Praticante de capoeira há 40 anos e convertido há 25, Suíno é líder do
movimento "Capoeiristas de Cristo", que estima reunir cerca de 5 mil pessoas
no país. Ele realiza encontros nacionais em Goiânia há 13 anos - a edição de
2018 será pela primeira vez em Brasília.
O mestre calcula ainda que já existem cerca de 30 "ministérios" de capoeira,
ou seja, grupos diretamente ligados a igrejas.
Estavam presentes o berimbau, o atabaque, a ginga e os saltos mortais.
Quase tudo fazia lembrar um jogo de capoeira típico, mas, em vez dos
cânticos que enaltecem os orixás ou trazem referências à cultura negra, os
versos faziam louvor a Jesus Cristo e a roda era alternada com momentos
de pregação e oração.
"Não deixa seu barco virar, não deixa a maré te levar, acredite no Senhor,
só ele é quem pode salvar", cantavam as cerca de 200 pessoas, reunidas
na quadra de uma escola para o "1º Encontro Cristão de
Capoeira do Gama" (região administrativa do Distrito Federal),
numa tarde de sábado.
Era mais um evento de capoeira evangélica, também chamada
de capoeira gospel, vertente que ganha cada vez mais adeptos no
Brasil, principalmente por meio da palavra e do gingado de antigos
mestres que se converteram à religião.
Se antes a prática enfrentava resistência dentro de igrejas, agora, nessa
nova roupagem, é cada vez mais considerada uma eficiente ferramenta
de evangelização.
"Hoje é difícil você ir numa roda que não tenha um
(capoeirista evangélico), e vários capoeiristas viraram pastores.
É um instrumento lindo de evangelização porque é alegre, descontraído,
traz saúde, benefícios sociais", afirma Elto de Brito, seguidor da Igreja Cristã
Evangélica do Brasil e um dos palestrantes do evento.
Praticante de capoeira há 40 anos e convertido há 25, Suíno é líder do
movimento "Capoeiristas de Cristo", que estima reunir cerca de 5 mil pessoas
no país. Ele realiza encontros nacionais em Goiânia há 13 anos - a edição de
2018 será pela primeira vez em Brasília.
O mestre calcula ainda que já existem cerca de 30 "ministérios" de capoeira,
ou seja, grupos diretamente ligados a igrejas.
Críticas
O crescimento da prática, porém, tem gerado incômodo entre capoeiristas
tradicionalistas e o movimento negro, que veem na novidade uma forma de
apropriação cultural e apagamento da raiz afrobrasiliera da capoeira, prática
que surgiu como forma de resistência entre escravos, a partir do século 18.
Eles também reclamam que em algumas dessas rodas haveria discursos de "demonização" contra a capoeira tradicional e as religiões do candomblé e
da umbanda.
O Colegiado Setorial de Cultura Afrobrasileira, que faz parte do Conselho
Nacional de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, chegou a divulgar
em maio a "Carta de repúdio à 'capoeira gospel' e à expropriação das
expressões culturais afrobrasileiras".
O documento, uma reação ao 3º Encontro Nacional de Capoeira Gospel
convocado para junho deste ano, em João Pessoa (PB),
reconhece que seguidores de qualquer credo podem praticar capoeira,
mas cobra "respeito" a sua tradição.
"Temos lutado contra o racismo em suas diversas e perversas manifestações.
A demonização perpetrada por pastores, mestres ou professores de 'capoeira
gospel', ensinando o ódio e a intolerância contra as raízes da capoeira e contra
seus praticantes não evangélicos, é um crime de ódio que fere a liberdade e a
dignidade humana", diz a carta.
O crescimento da prática, porém, tem gerado incômodo entre capoeiristas
tradicionalistas e o movimento negro, que veem na novidade uma forma de
apropriação cultural e apagamento da raiz afrobrasiliera da capoeira, prática
que surgiu como forma de resistência entre escravos, a partir do século 18.
Eles também reclamam que em algumas dessas rodas haveria discursos de "demonização" contra a capoeira tradicional e as religiões do candomblé e
da umbanda.
O Colegiado Setorial de Cultura Afrobrasileira, que faz parte do Conselho
Nacional de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, chegou a divulgar
em maio a "Carta de repúdio à 'capoeira gospel' e à expropriação das
expressões culturais afrobrasileiras".
O documento, uma reação ao 3º Encontro Nacional de Capoeira Gospel
convocado para junho deste ano, em João Pessoa (PB),
reconhece que seguidores de qualquer credo podem praticar capoeira,
mas cobra "respeito" a sua tradição.
"Temos lutado contra o racismo em suas diversas e perversas manifestações.
A demonização perpetrada por pastores, mestres ou professores de 'capoeira
gospel', ensinando o ódio e a intolerância contra as raízes da capoeira e contra
seus praticantes não evangélicos, é um crime de ódio que fere a liberdade e a
dignidade humana", diz a carta.
Patrimônio
A capoeira, que no passado chegou a ser proibida, recebeu em 2014 o título
de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco, órgão da ONU
para educação. O Iphan, órgão responsável por sua "salvaguarda" no Brasil,
reconhece em documento sua "ligação com práticas ancestrais africanas".
A antropóloga Maria Paula Adinolfi, técnica do Iphan, diz que "não é possível
impedir a capoeira gospel", mas explica que o órgão está focado em
"fortalecer ações que vinculam a capoeira à matriz africana" como
"uma política de reparação do processo de apagamento da memória
afrobrasileira e de genocídio do povo negro".
Organizador do evento na Paraíba, Ricardo Cerqueira, o contramestre Baiano,
recebeu, além da carta de repúdio, algumas ligações com críticas e até
mesmo ameaças de processo. Seguidor da Igreja Batista, ele diz reverenciar
os grandes mestres da capoeira, como os baianos Bimba, Pastinha e Waldemar,
já falecidos, mas argumenta que a "capoeira não pertence à cultura africana".
"O país é laico. Acho que cada um tem liberdade para fazer a sua capoeira da
forma que quiser", defendeu.
"Colocamos o nome gospel sem intenção de descaracterizar a capoeira, até
porque nós usamos todos os instrumentos e cantamos também música
secular", disse ainda.
A capoeira, que no passado chegou a ser proibida, recebeu em 2014 o título
de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco, órgão da ONU
para educação. O Iphan, órgão responsável por sua "salvaguarda" no Brasil,
reconhece em documento sua "ligação com práticas ancestrais africanas".
A antropóloga Maria Paula Adinolfi, técnica do Iphan, diz que "não é possível
impedir a capoeira gospel", mas explica que o órgão está focado em
"fortalecer ações que vinculam a capoeira à matriz africana" como
"uma política de reparação do processo de apagamento da memória
afrobrasileira e de genocídio do povo negro".
Organizador do evento na Paraíba, Ricardo Cerqueira, o contramestre Baiano,
recebeu, além da carta de repúdio, algumas ligações com críticas e até
mesmo ameaças de processo. Seguidor da Igreja Batista, ele diz reverenciar
os grandes mestres da capoeira, como os baianos Bimba, Pastinha e Waldemar,
já falecidos, mas argumenta que a "capoeira não pertence à cultura africana".
"O país é laico. Acho que cada um tem liberdade para fazer a sua capoeira da
forma que quiser", defendeu.
"Colocamos o nome gospel sem intenção de descaracterizar a capoeira, até
porque nós usamos todos os instrumentos e cantamos também música
secular", disse ainda.
Diferenças
Além das músicas e orações, mais alguns detalhes diferenciam a capoeira
evangélica da "capoeira do mundo", explicou à reportagem Gilson Araújo
de Souza, pastor evangélico e mestre capoeirista em Manaus.
Em geral, rodas evangélicas não chamam a troca de corda de "batismo"
porque o termo deve ser usado apenas no seu sentido religioso, de se
converter e receber o Espírito Santo. Além disso, alguns capoeiristas
também evitam o uso de apelidos, que, segundo Souza, tem origem
na época que a capoeira era perseguida.
"No mundo cristão, Deus nos chama pelo nome. Antes, eu era conhecido
como mestre Gil Malhado, hoje sou chamado de mestre pastor
Gilson. Não preciso me camuflar", explica ele, que faz parte da Igreja
de Cristo Ministério Apostólico.
"Anos atrás, eu enfrentei muita dificuldade para levar a capoeira
para a igreja. O pastor batia a porta na minha cara, dizia que era coisa
da macumba, que não podia. Hoje eu sou pastor e as portas se
abriram", conta também.
Segundo o mestre Suíno, a adoção do termo "gospel" fez parte
desse processo de quebrar resistências. Era uma forma, observa,
de convencer os pastores que a capoeira podia ser praticada dentro
dos valores cristãos.
Hoje ele próprio repudia esse "rótulo" por causa da polêmica que tem
gerado. Suíno afirma que, apesar de haver algumas práticas próprias
da capoeira cristã, sua "essência" de capoeira é a mesma.
"Não existe capoeira gospel! Não queremos bagunçar a capoeira.
Nós respeitamos os mestres, respeitamos os fundamentos da capoeira,
respeitamos as tradições, e vamos defender porque quem não defende
a capoeira não tem direito de ser capoeirista", discursou, empolgado,
durante o evento no Gama, cujo lema era "minha cultura não
atrapalha a minha fé".
Além das músicas e orações, mais alguns detalhes diferenciam a capoeira
evangélica da "capoeira do mundo", explicou à reportagem Gilson Araújo
de Souza, pastor evangélico e mestre capoeirista em Manaus.
Em geral, rodas evangélicas não chamam a troca de corda de "batismo"
porque o termo deve ser usado apenas no seu sentido religioso, de se
converter e receber o Espírito Santo. Além disso, alguns capoeiristas
também evitam o uso de apelidos, que, segundo Souza, tem origem
na época que a capoeira era perseguida.
"No mundo cristão, Deus nos chama pelo nome. Antes, eu era conhecido
como mestre Gil Malhado, hoje sou chamado de mestre pastor
Gilson. Não preciso me camuflar", explica ele, que faz parte da Igreja
de Cristo Ministério Apostólico.
"Anos atrás, eu enfrentei muita dificuldade para levar a capoeira
para a igreja. O pastor batia a porta na minha cara, dizia que era coisa
da macumba, que não podia. Hoje eu sou pastor e as portas se
abriram", conta também.
Segundo o mestre Suíno, a adoção do termo "gospel" fez parte
desse processo de quebrar resistências. Era uma forma, observa,
de convencer os pastores que a capoeira podia ser praticada dentro
dos valores cristãos.
Hoje ele próprio repudia esse "rótulo" por causa da polêmica que tem
gerado. Suíno afirma que, apesar de haver algumas práticas próprias
da capoeira cristã, sua "essência" de capoeira é a mesma.
"Não existe capoeira gospel! Não queremos bagunçar a capoeira.
Nós respeitamos os mestres, respeitamos os fundamentos da capoeira,
respeitamos as tradições, e vamos defender porque quem não defende
a capoeira não tem direito de ser capoeirista", discursou, empolgado,
durante o evento no Gama, cujo lema era "minha cultura não
atrapalha a minha fé".
Constante mutação
Diante da polêmica, o historiador da capoeira Matthias Röhrig Assunção
ressalta que a prática já passou por muitas transformações desde seu surgimento.
Hoje, há três vertentes principais: a angola (mais lenta e gingada, tida como
a mais próxima da "original"), a regional (mais acelerada, que incorpora
movimentos de lutas marciais) e a contemporânea - uma mistura das duas
primeiras que surgiu no Sudeste a partir dos anos 70 e foi o estilo que
conquistou o mundo.
"Acho que capoeira tradicional não existe mais, todos (os estilos) são
modernizados", resume Assunção, que é professor do departamento
de história da Universidade de Essex, na Inglaterra.
Embora não simpatize com a ideia de uma capoeira evangélica, o
professor afirma que não se trata do primeiro processo de "apropriação" da prática.
"A capoeira gospel me parece ser mais uma estratégia desses grupos
religiosos de ocuparem espaços e de ganhar adeptos, mas não vejo
como parar isso, não tem como proibir", observou.
"Historicamente, houve muitas apropriações da capoeira. Há uma
apropriação nacionalista forte, rodas no exterior com as bandeiras do
Brasil, o verde e o amarelo, por exemplo, em que a origem da capoeira,
a história de resistência e a ligação com os africanos escravizados
muitas vezes não têm destaque algum", pondera.
Diante da polêmica, o historiador da capoeira Matthias Röhrig Assunção
ressalta que a prática já passou por muitas transformações desde seu surgimento.
Hoje, há três vertentes principais: a angola (mais lenta e gingada, tida como
a mais próxima da "original"), a regional (mais acelerada, que incorpora
movimentos de lutas marciais) e a contemporânea - uma mistura das duas
primeiras que surgiu no Sudeste a partir dos anos 70 e foi o estilo que
conquistou o mundo.
"Acho que capoeira tradicional não existe mais, todos (os estilos) são
modernizados", resume Assunção, que é professor do departamento
de história da Universidade de Essex, na Inglaterra.
Embora não simpatize com a ideia de uma capoeira evangélica, o
professor afirma que não se trata do primeiro processo de "apropriação" da prática.
"A capoeira gospel me parece ser mais uma estratégia desses grupos
religiosos de ocuparem espaços e de ganhar adeptos, mas não vejo
como parar isso, não tem como proibir", observou.
"Historicamente, houve muitas apropriações da capoeira. Há uma
apropriação nacionalista forte, rodas no exterior com as bandeiras do
Brasil, o verde e o amarelo, por exemplo, em que a origem da capoeira,
a história de resistência e a ligação com os africanos escravizados
muitas vezes não têm destaque algum", pondera.
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