Filme sombrio sobre crianças com 'poderes' mira público infantojuvenil.
Com momento 'Scooby Doo', longa tem recuperação parcial do diretor.
Tim Burton andou tomando uns 7 a 1 da vida por causa dos últimos filmes. A tela pune: ninguém mandou fazer cinema de resultados como nos inexplicáveis “Alice no país das maravilhas” (2010) e “Sombras da noite” (2012). Com pinta de ex-cineasta em atividade, o diretor sobrevivia de títulos do passado, tipo “Edward mãos de tesoura” (1990), “Ed Wood” (1994) e “Peixe grande e suas histórias maravilhosas” (2003). A obra recente não vinha justificando a reputação de “o estilista de Hollywood”, “o autoral esquisito e criativo”, “o dark sombrio mas colorido”, “o tragicômico”.
"O lar das crianças peculiares" (assista ao trailer acima), que estreia nesta quinta-feira (29) no Brasil, era chance da redenção. E o que fez o Tim Burton? Fez filme para a torcida. Em aventura francamente voltado ao público infantojuvenil, com muita alegoria e adereço, ele misturou “Harry Potter” e “X-Men”. Como é que ninguém tinha pensado nisso antes? Então: tinha, sim. O longa é inspirado no best-seller internacional “O orfanato da Srta. Peregrine para crianças peculiares”, lançado em 2011 pelo escritor americano Ransom Riggs.
O livro vendeu milhões, foi traduzido para 40 idiomas, ficou dois anos na lista do “New York Times” e entrou numa lista da Amazon de 100 obras indispensáveis do filão Young Adult. Longe de ser obra-prima do segmento, tinha potencial evidente. Mas e o filme? E o Tim Burton?
Se fosse compacto de melhores momentos (ou trailer), "O lar das crianças peculiares" mereceria aplausos. Não sendo o caso, fica a sensação de alívio (“ufa, o diretor não usou a história só como pretexto para mostrar que é capaz de criar cenários arrebatadores, investindo só na embalagem e esquecendo do conteúdo”). E de esperança ("vai que vira franquia...").
O enredo do livro tem mesmo o estilão do Tim Burton. Na prática, isso quer dizer personagens com dons extraordinários sendo excluídos do convívio social por pessoas ordinárias. O protagonista é Jake (Asa Butterfield), adolescente totalmente perdedor que tinha sido uma criança especialista em sofrer bullying. Culpa do avô (Terence Stamp), que lhe narrava aventuras incríveis e fazia o neto crer que era tudo verdade, a ponto de usá-las em tema de trabalho escolar, coitado.
Quando o velho morre de um jeito aparentemente bem bizarro, Jake quer investigar aquelas histórias todas. Nessas, o rapaz encontra o local que batiza o filme. Lá vive um grupo de garotos e garotas com habilidades especiais (não espere nada do tipo super-herói). Você vai se lembrar muito de "X-Men" – e "Crianças peculiares" leva a vantagem de ser menos enfaticamente pretensioso que a trama dos mutantes. E também porque a roteirista, Jane Goldman, assinou os dois últimos episódios da franquia: “Primeira classe” (2011) e “Dias de um futuro esquecido” (2014). O ingrediente "Harry Potter" tem a ver, em parte, com esse lance do jovem em conflito com sua hipotética anormalidade.
"O lar das crianças peculiares" sabe manter o interesse do espectador por essa caminhada de Jake. Tem suspense, susto e uns monstros gourmets cujo prato favorito é olho humano cru. Grotesco e nojento, mas jamais com excesso de sangue e no ponto para não afetar o estômago sensível da molecada. Os bichos do mal são realmente um horror, mas Tim Burton é cuidadoso para não transformar tudo em terror escatológico. Pena que às vezes ele tome cuidado demais...
A apressada batalha final do filme é exemplo do efeito colateral nocivo da conduta. É retratada com uma tentativa de humor físico nonsense que parece paródia de videoclipe. Em vez de aliviar a tensão e contribuir para o engajamento na história, faz lembrar o desenho “Scooby Doo”. Fica sendo um fim francamente anticlimático.
Outra coisa triste em "O lar das crianças peculiares" é o desempenho geral do elenco. Todo mundo está meio no esquema “cada um por si” – sozinhos em cena, estão razoáveis; complica é na hora de interagir. As relações podem até ser intensas no discurso, mas nunca nas ações. Na prática, a teoria é outra...
Asa Butterfield como Jake investe na cara de angustiado mas varia pouco em seu leque de duas expressões faciais (ele já foi melhor em outros trabalhos). A atriz Ella Purnell, que faz Emma Bloom, uma jovem mais leve que o ar, se esforça. É pena que nem ela nem o Asa acreditem nos sentimentos que seus personagens sentem um pelo outro. Já Samuel L. Jackson justifica a crítica-clichê: sai-se otimamente no papel de Samuel L. Jackson – em versão canastra.
Salva-se a excelente Eva Green como a Miss Peregrine. O desempenho da atriz francesa simboliza o potencial (não realizado) de "O lar das crianças peculiares". Mas é injusto considerar o filme descartável. Ele traz amostras da inspiração de Tim Burton.
O fã que comparar com "Edward mãos de tesoura" ou "Peixe grande" vai se frustrar. Mas o segredo da felicidade também é a redução das expectativas. Leva vantagem aqui quem exigir menos que o auge de um diretor que já foi excepcional.
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